Em 1974 iniciamos todos uma revolução que abriu o futuro às populações de todo o país. A liberdade social e comunitária conheceu um dinamismo que o país nunca tinha visto, amarrado que estava a uma visão a preto e branco, entre bons e maus, pessoas de “bem” e outras nem por isso, tudo a “bem da Nação”.

Um passado negro onde não faltou a partir dos anos sessenta a convocatória “nacional” para a guerra em África e o pavor que causava quando as nossas mães sabiam, no momento do parto, que nascera o seu filho, em vez de ser menina. Só quem sofreu, em silêncio, este medo o poderá expressar e partilhar se para isso ainda houver forças.

A política era assim coisa do domínio do medo, expressa entre dentes pelos sofredores e proclamada, sem dúvidas, pelos senhores do “poder”.

Este drama terminou cerca das onze da manhã no dia 25 de Abril quando já todos sabíamos que em Lisboa tinha estalado de madrugada uma “revolução” e que a coisa, de tanto esperada, dava os primeiros passos.

Tudo correu bem quando se viu o cravo vermelho na ponta da espingarda. E a aventura da democracia começou, cheia de emoções, também contradições que o tempo resolveu.

Um país livre e democrático, regulado pela lei geral, na igualdade dos cidadãos.

O poder autárquico

Próxima de nós, a democracia tomou rosto na nossa terra, e pudemos experimentar nas nossas comunidades um desenvolvimento nunca visto e experimentado por aqueles que à causa pública deram e dão o seu melhor, sob escrutínio dos seus vizinhos.

A proximidade da política é assim experimentada e vigiada, na construção de uma civilização moderna, ocupada na inclusão dos mais débeis e promotora das iniciativas dos mais audazes.

O rosto do país mudou. Com investimento do Governo passamos a saber o que era uma auto-estrada (no norte o primeiro troço da A1 ligou o Porto a Vila da Feira…uma festa!), as universidades deixaram de ser exclusivo de Lisboa, Porto, Coimbra e Braga, o Serviço Nacional de Saúde passou a acolher todos, a escola pública ocupou o espaço que era seu.

A economia agradeceu, o horizonte de actividade expandiu-se na boleia da moeda única, e as entidades particulares (organizações e empresas) iniciaram o voo da andorinha, na liberdade da sua própria escolha.

Nas nossas terras abriram-se estradas, os semáforos iluminaram o trânsito (depois substituídos por rotundas) novas vias foram desenhadas, espaços culturais (bibliotecas) implantados.

O poder autárquico atingiu o seu esplendor e hoje mostra de facto que o desenvolvimento comunitário é a pedra de toque do regime democrático, pela obra realizada e pela escola de formação de líderes políticos que é e como facilmente se prova.

As organizações sociais

Ao mesmo tempo, a iniciativa particular empenhou-se no desenvolvimento da acção social, com a libertação das misericóridas da nacionalização, entretanto ocorrida em 1975, a progressiva criação de IPSS na promoção de uma verdadeira rede nacional de accção social e de luta contra a pobreza.

Nesta altura, nem governo nem municípios, olhavam para acção social como instrumento de acção política.

Nos anos oitenta, as IPSS afirmavam a sua identidade e reivindicavam a autonomia do poder político tendo constituído a sua organização nacional (a UIPSS – União das Instituições Particulares de Solidariedade Social) a exemplo do que tinha acontecido com as misericórdias que tinham criado a UMP – União das Misericórdias Portuguesas, com o contributo inesquecível do padre de Viseu, Monsenhor Virgílio Lopes.

Nesta época, falar de IPSS e Solidariedade era coisa desconhecida, conhecendo-se coisa parecida (apenas no nome) na Polónia, onde Walesa liderava o sindicato Solidarnosc com o apoio do mártir padre Popielusko que morreu às ordens do presidente Jaruzelski.

A municipalização das IPSS

O crescimento do movimento social, o aparecimento de IPSS em todo o país foi de tal modo crescendo que surgiu no Governo o apetite do seu controlo com as instituições a defenderem e proclamarem o devido respeito pelo “princípio da subsidariedade” que deveria ser tido em conta por “quem manda”, no respeito por “quem trabalha” admitindo-se que não caberá à dimensão do poder assumir as tarefas que a nossa gente já garante, na terra de cada um.

Foi com o então ministro Valente de Oliveira – sob a presidência de Cavaco Sila – que surgiu a vontade de colocar a actividade destas instituições sob os auspícios das autarquias.

A resistência das IPSS – agregadas na UIPSS e UMP – foi suficiente para que o ministro da ideia fosse substituído por Silva Peneda e mais tarde acompanhado por Bagão Félix, tendo caído esta tentação ou apetência vista pelos promotores sociais como uma ingerência do poder partidário nas IPSS – coisa que importaria evitar.

A ideia foi abandonada e das negociações acabou por sair um “protocolo de colaboração” entre as entidades representativas do sector que tuteladas pela Segurança Social passariam a definir as regras de funcionamento e da prestação dos serviços sociais às comunidades e seus utentes.

Na altura era convicção do sector social que a tutela (e por isso dependência administrativa) deveria ser nacional e não local, até para garantir a igualdade de todos perante a lei, estando todos dispensados da tentação que seria depender da interpretação circunstancial de cada senhor presidente da câmara.

Hoje existem cerca de 4 000 instituições no país, todas elas com uma actividade regulada e com tradição, com resultados evidentes, expressão da qualidade da democracia e do bem que ela promove quando o bem público está na base da decisão.

A nova tentação

A chamada “transferência de competências” em sede de acção social está, neste momento, em negociação entre a ANMP e a CNIS, UMP, UM e sector cooperativo, aliás na sequência de uma orientação do Governo para que até Abril se esclareçam dúvidas ocorridas, no sentido de a medida ser aplicada da mesma forma em todo o país, no respeito pela identidade e função das IPSS e da natureza institucional dos municípios.

Teme o sector social ver-se confrontado na sua acção com uma “concorrência inesperada” no momento da sua constituição, sempre caracterizado por elevados investimentos necessários para oferecer a cada comunidade o serviço de inclusão realizado.

Temem os seus dirigentes que tendo dado, mais vezes de que deviam, garantias pessoais em sede de investimentos financeiros para obras, ver agora a actividade prevista ser diminuída apenas pelo facto de um ou outro município poder, dentro da sua liberdade de iniciativa, instalar na mesma comunidade um serviço concorrente.

A ilusão dos autarcas

Compreende-se a disponibilidade dos autarcas em abraçar estas “competências” sobretudo depois de realizados os investimentos em infraestruturas. Acabados estes, que funções exercer na comunidade?

Cai assim no âmbito das suas decisões – dir-se-ia, é sopa no mel – a possibilidade de tratar e apoiar quem “mais precisa” e garantir a “preocupação das pessoas” e sobretudo de “quem mais precisa”. Não sei se me estão a perceber!

Nesta avalanche de iniciativas, com dinheiro do PRR, quem vai perder a “oportunidade” de “realizar obra” absolutamente essencial? Claro que ninguém, se estiver no “perfeito juízo”.

E é muito importante que este investimento seja feito.

Mas também é essencial que seja planeado de acordo com a “capacidade instalada” em cada município no respeito pela história de quem avançou nomeadamente na altura em que “isso era coisa de pobres…” e que, na ausência do “estado social” se empenhou em responder às necessidades de cada comunidade.

Entusiasmo precoce

Compreende-se pois o entusiasmo de autarcas na implementação de novas soluções e oportunidades. Mas é também momento para lembrar o seguinte:

  • na alegria e entusiasmo do anúncio, tudo indicará para o “sucesso da iniciativa” com a respectiva recolha do benefício eleitoral;
  • no desenvolvimento da resposta social, surgem os problemas da gestão diária, as listas de espera, enfim, coisas que sabemos e colocam em causa a “imagem política de quem não resolve” ou não tem resposta “para mim”. O efeito eleitoral também aqui acontece.

Dadas estas circunstâncias, o apelo do Governo para que se desenhe um protocolo nacional orientador para o diálogo local entre município e instituições aparece em momento oportuno.

O equilíbrio das relações institucionais em cada município passará também a ser um barómetro da qualidade da democracia no nosso país.

Por Arnaldo Meireles