A ressurreição da velha República

A CNIS está a acompanhar com “muita apreensão” o polémico processo de transferência de competências para as autarquias, diz o padre Lino Maia à Renascença. Instituto da Segurança Social deveria compensar financeiramente as instituições que vão “ter de indemnizar os trabalhadores a despedir”, defende.

 A notícia (e a foto) é da Rádio Renascença e merece reflexão, sobretudo para vermos por que acontece isto, em mais um ciclo de medidas que não nos surpreendendo explicam a fragilidade das convicções de quem nos governa ao longo do tempo.
A utilidade da decisão acompanha um calendário político que, não sendo de agora, fragiliza a sociedade civil e coloca os dirigentes sociais perante um cenário de pressão, um autêntico teste à sua resiliência na dedicação voluntária à causa pública.

A ressurreição da velha República

A memória indica-nos a nacionalização das Misericórdias em 1975 – e da qual nos fomos libertando – mas também a resposta dos cidadãos que pelas suas mãos e financiamento construíram em todo o país soluções de integração social.

Nessa altura ninguém falava de “solidariedade”, “integração social”, desenvolvimento comunitário”, e não havia sequer academias que formassem “assistentes sociais” e outras categorias profissionais que felizmente o tempo e a democracia permitiram ver a luz do dia para bem de todos no esforço da melhoria do trabalho social e de acolhimento de quem precisa por estar fora do mundo do trabalho.

Com os anos da “cavaquismo” e pela pena do então ministro Valente de Oliveira surgiu a novidade da “municipalização” das IPSS, dado o seu crescimento em todo o país e a “necessária regulação” da sua actividade. Esta como sabemos está desenhada na lei e sobretudo na Constituição:

Artigo 46.º- Liberdade de associação

Os cidadãos têm o direito de, livremente e sem dependência de qualquer autorização, constituir associações, desde que estas não se destinem a promover a violência e os respectivos fins não sejam contrários à lei penal.Artigo 63.º

Artigo 63º – Segurança Social e Solidariedade

1. Todos têm direito à segurança social.

2. Incumbe ao Estado organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado e descentralizado, com a participação das associações sindicais, de outras organizações representativas dos trabalhadores e de associações representativas dos demais beneficiários.

3. O sistema de segurança social protege os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho.

4. Todo o tempo de trabalho contribui, nos termos da lei, para o cálculo das pensões de velhice e invalidez, independentemente do sector de actividade em que tiver sido prestado.

5. O Estado apoia e fiscaliza, nos termos da lei, a actividade e o funcionamento das instituições particulares de solidariedade social e de outras de reconhecido interesse público sem carácter lucrativo, com vista à prossecução de objectivos de solidariedade social consignados, nomeadamente, neste artigo, na alínea b) do n.º 2 do artigo 67.º, no artigo 69.º, na alínea e) do n.º 1 do artigo 70.º e nos artigos 71.º e 72.º.

Chegados aqui

Os dois artigos aqui publicados deram muito trabalho, justificaram muita luta, envolveram negociações entre partidos, organizações civis e eclesiásticas, num acordo de governação básico em que o Estado democrático se reconciliou com as instituições sociais depois dos calores de 1975.

Protocolos de cooperação entre sectores e o ministério da Segurança Social foram sendo feitos e alterações à legislação também construídos, num diálogo que embora trabalhoso tem dado frutos evidentes como se provou nos dois anos da pandemia do Covid e, se fosse necessário, isso seria suficiente para explicar a quem não sabe ou não quer ver a indispensabilidade destas organizações e o imprescindível trabalho dos seus dirigentes e empenho dos seus trabalhadores.

A transferência de competências para as autarquias

A municipalização das IPSS de Valente de Oliveira é agora englobada numa “reforma do Estado” onde se inclui a “transferência de competências” para as autarquias. A oferta vem agora dentro de um novo embrulho que afaga as IPSS e as coloca num destino bífido: continuam a depender da Ministério da Segurança Social (e do seu instituto policial privado) e são colocadas “voluntariamente” a discutir com o respectivo autarca as opções estratégicas da sua acção.

A ocasião, contudo, não é a melhor dado que se verifica no lado dos autarcas uma relativa crise existencial ocupados que estão em descobrir o que haverá mais para fazer depois de terem (e bem) traçado as últimas avenidas, as inovadoras rotundas, isto é, o que fazer depois de 40 anos ocupados nas infraestruturas?

As pessoas, pois claro. E assim nasce uma súbita vocação alimentada pela “transferência” de competências (quais e de quem?) em domínio social a favor da autarquia colocando, de facto, sob o seu domínio a acção das IPSS que, em devido tempo, se libertaram do Estado e agora se veem ocupadas/incomodadas pelo apetite social dos senhores autarcas.

Chegados ao ponto de ter que despedir funcionários – quadros competentes ali formados – os dirigentes sociais experimentam a sensação da OPA hostil: operação pública de aquisição (sem pagamento) de actividade, com o custo social de colocar no desemprego os seus trabalhadores.

Houvesse ética (mesma a republicana, chegava) e o Estado, dono da transferência, deveria ter acautelado às IPSS a justa remuneração por cessação de actividade. E aqui poderiam ter encontrado a forma equilibrada para acautelar os despedimentos.

Mas isto seria ainda pouco. Preocupante é a tendência de arrebanhar para a esfera pública a actividade social dos particulares, engordando o poder municipal, refreando o crescimento da sociedade civil.

A velha República não desiste do sonho de tudo abarcar no mar do “serviço público”, fazendo “olhos de mercador” ao desenvolvimento social do país e aos frutos que a democracia permitiu.

Daí que voltemos de novo à discussão dos anos 90, tenhamos que reler Valente de Oliveira, mas também, já agora Silva Peneda e Bagão Félix que, em devido tempo, perceberam o sentido da coisa.

O sentido da coisa

Vivemos os primeiros meses do processo de “transferências” dados a opções diversas sem uma orientação da “tutela” (sim, as autarquias também têm tutela) que começasse por explicar a base da relação entre Governo e IPSS (agora, em parte entre a IPSS e a Autarquia).

Na base está o que a Constituição estabelece: “O Estado apoia e fiscaliza a actividade das IPSS”. Partindo daqui como sustentar a aniquilação de serviços por elas prestadas quando da autarquia deveriam receber apoio? E perante esta OPA hostil como devem o dirigentes reagir?

Percebe-se que o 25 de Abril de 1974 ainda está mal resolvido por muitos dirigentes da nossa classe política.

Uma sociedade aberta e democrática deve conhecer os seus inimigos para os combater no âmbito da lei, mas sobretudo deve conhecer os seus amigos para com eles promover o desenvolvimento comunitário e a integração social dos mais frágeis.

A apressada transferência de competências sociais para as autarquias vai criar “quistos de autoridade” local em detrimento de uma acção social politicamente desinteressada, levando a comunidade a afastar-se (por decreto municipal) do empenhamento voluntário nas acções sociais.

Promovendo a “profissionalização” da acção social voluntária, colocam na esfera do poder e sua administração tarefas que a sociedade civil descobriu, resolveu e mantém.

Esta tensão vai continuar e vai depender da força dos dirigentes sociais que precisam de explicar aos senhores da política os caminhos a trilhar na organização da sociedade. Esta vive e é a soma de experiências humanas, as mais diversas, a maioria da vezes estranha à decisão política, feita e promovida por líderes de “colarinho branco” especialistas em matemática eleitoral.

Percebemos a música e não gostamos dela. Ouvimos mas não entramos na dança.

Por Arnaldo Meireles

 

 

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