Meu coração deu um pulo quando de repente percebi que, graças a alguma experiência de pais com crianças difíceis, eu posso me identificar completamente com o pai da parábola do filho pródigo. Deus me ajude, eu sou o pai.
Por Valerie Schultz
“Tragam o novilho gordo e matem-no. Vamos fazer uma festa e comemorar. Pois este meu filho estava morto e voltou à vida; estava perdido e foi achado’. E começaram a festejar” (Lc 15, 23–24).
Como muitas das parábolas de Jesus, a parábola do filho pródigo no Evangelho de Lucas apresenta um elenco só de homens. Está o pai, amoroso e misericordioso, o filho mais velho, crítico e impaciente, e o filho mais novo, imprudente e hedonista. Essa parábola foi encorajada em muitas homilias ao longo dos anos e me convidou a me colocar no papel apropriado em cada situação reflectindo sobre meu próprio comportamento, com o objetivo de tirar insights sobre a prática da minha fé.
Na minha família agora, no entanto, os papéis são femininos. Meu marido é o pai amoroso de nossas filhas, mas assuntos familiares recentes dizem respeito às mulheres.
No início deste ano, fui à missa com minha irmã e, estimulada pela homilia do sacerdote e o convite a vivermos o drama do evangelho, conversamos depois no carro.
“Eu tenho medo de ser o filho mais velho”, disse minha irmã, que é como sempre me caracterizei. Minha luta ao longo da vida contra a atitude de ser excessivamente crítica ainda está para ser vencida. Mas então minha irmã disse: “Sou a criança que sempre fez a coisa certa, e me ressenti quando as crianças que faziam coisas erradas não arrumaram confusão com os pais!” Quando era mais nova, teria gostado de ver como aquelas crianças que se portavam mal pagavam pelo que faziam.
Meu coração deu um pulo quando de repente percebi que, graças a alguma experiência de pais com crianças difíceis, posso me identificar completamente com o pai da parábola do filho pródigo.
Entendo que o pai correu para encontrar seu filho que voltava, com alívio e alegria “ainda muito longe”. Eu também já estive lá. Houve um momento sombrio na vida de uma das minhas filhas quando eu temia atender uma ligação de um número desconhecido no telefone. “Temer” é uma palavra muito branda, na verdade, porque eu estava com muito medo de que alguma ligação indesejada fosse a notificação de que minha filha estava morta.
Uma alcoólatra praticante, ela estava solta por aí, com a misericórdia do mundo, com seu comportamento imprudente e arriscado. E eu não podia fazer nada a respeito. Quando finalmente recebi a ligação, as notícias não eram tão ruins: ela não estava morta, mas na cadeia. Entre outras acusações, ela havia agredido um policial. Suspeito que sobreviveu àquele encontro com a lei porque era uma garota branca e não uma pessoa de cor, um pensamento que me enche de gratidão e vergonha.
Conto essa história com a permissão da minha filha, porque ela está agora sóbria. Ela estava perdida e agora, um dia de cada vez, se encontrou. Como o pai da história, certamente celebrei seu retorno dos mortos. Queria colocar um anel em seu dedo e sandálias em seus pés. Eu a vejo com os olhos do pai. Ele era misericordioso e compassivo, mas na maioria das vezes ele se sentiu aliviado por não ter que enterrar uma criança amada. Agora compreendo isso no fundo dos meus ossos.
No entanto, minha alegria é contida pela maneira como esse novo capítulo promissor na vida de minha filha deu origem a algum ressentimento entre suas irmãs. A reacção delas à sua recuperação me pegou de surpresa, embora faça sentido: elas, como minha irmã, foram as crianças que fizeram as coisas certas, comparativamente falando. É como se elas estivessem acostumadas a que minha filha que lida com problemas de álcool, fosse aquela que estragou tudo o tempo todo, que causou todo o sofrimento a seus pais, e agora elas não sabem exactamente o que fazer com essa irmã que voltou.
E, por mais que ela apresente essa pessoa nova, melhorada e autoconsciente, por mais que queira que elas confiem em sua sobriedade, integridade e honestidade, elas não o fazem – ainda não, de qualquer forma. E ela, por sua vez, não entende. Por que são tão críticas? Por que a afastam tão desdenhosamente? Por que estão segurando a expectativa de um retorno às suas formas pródigas do passado?
Os irmãos da história do Evangelho não parecem ter sido próximos. Minhas filhas foram. Elas têm personalidades diferentes, mas sempre se apoiaram mutuamente, um esquadrão convicto de irmãs de sangue. Agora há turbulência entre elas, já que essa dinâmica familiar sob transformação abala a lógica da relação entre elas. Nunca deixe ninguém dizer que a sobriedade é fácil para uma família: o retorno de um filho pródigo pode desencadear incêndios.
Consideremos por um momento os passos oito e nove do programa Alcoólicos Anónimos. O alcoólatra em recuperação deve fazer uma lista das pessoas que prejudicou e, em seguida, fazer “reparações directas para essas pessoas sempre que possível, excepto quando isso possa prejudicar elas ou aos outros”. Fazer essas correcções pode envolver um pedido de desculpas ou devolver dinheiro ou reparar algum dano ou de alguma forma restaurar um relacionamento. Aquele que faz as pazes faz isso na esperança de recuperar a confiança de alguém.
Imagine que você está em recuperação e fez a incrivelmente difícil e humilde lista de pessoas que você machucou e, bravamente, ofereceu um pedido de desculpas a uma pessoa que é importante para você. Mas, agora, imagine que a pessoa de quem você cuida não coopera com suas intenções ao não ouvir você ou não aceitar suas ofertas ou não perdoar ou não concordar em vê-lo. É fácil imaginar o irmão mais velho da história rejeitando as desculpas do pródigo como inadequada, falsa ou com fanfarronice. Você pode imaginar a surpresa ou os sentimentos de mágoa do irmão mais novo ou talvez o ressentimento com a rejeição. Em suma, você pode imaginar a dor e a confusão que podem acompanhar os 12 passos. A sobriedade é uma coisa boa, mas na realidade pode ser mais do que uma família pode suportar.
Na história do Evangelho, o pai amoroso é aquele que tenta preencher a lacuna de empatia entre os irmãos. Esse é agora o meu papel. O problema é que não sei se funciona. A história de Jesus termina antes de sabermos se os esforços do pai na reconciliação foram bem-sucedidos. Tenho dúvidas persistentes: o irmão mais novo procura fazer as pazes? O irmão mais velho deixa de lado sua amargura e se junta à festa celebrando o retorno de seu irmão? Ou ele se mantém separado, preso a um julgamento e a uma antipatia que tudo consome?
Não sou uma pessoa sábia, adepta a consertar as feridas entre minhas filhas. Uma de minhas irmãs não fala mais comigo, então, obviamente não sou especialista em resolver os problemas que as irmãs podem ter umas com as outras. Sou, pelo contrário, um elo quebrado em uma corrente quebrada. Lamento a perda de um amor fraternal que uma vez considerei inquebrável. Sei que o sangue nem sempre é espesso o suficiente para prevalecer. Meu coração está dolorido com as divisões entre minhas filhas e rezo para que as palavras e a sabedoria sejam a ponte ou, pelo menos, a água em que cada uma delas pode cair com segurança enquanto tentam atravessar.
A próxima vez que um sacerdote sugerir em uma homilia que eu me coloque na leitura do Evangelho, saberei que não sou mais o irmão mais velho da história. Deus me ajude, eu sou o pai.
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in America The Jesuit Review
*Valerie Schultz é escritora freelancer, colunista do The Bakersfield Californian e autora de Overdue: A Dewey Decimal System of Grace. Ela e o marido Randy têm quatro filhas.
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