A economia de uma sociedade justa

I. Como deve ser a economia de uma sociedade justa? Bom, a resposta passa necessariamente por aquele ambiente cosmopolita que é normalmente identificado através da sua alcunha: o mercado. Porém, este ensaio não procura fazer a enésima defesa da superioridade do mercado. Ao invés, este ensaio tenta reinvocar elementos da tradição liberal que estão a montante do mercado. No fundo, desenvolvemos aqui um argumento político e social, flanqueando assim o economês reinante no espaço público. E esse argumento mui clássico é o seguinte: sem um Estado de Direito forte e sem um conjunto robusto de “corpos intermédios”, o mercado não é eficaz e, por arrastamento, não é possível criar uma sociedade justa.

II. A economia de uma sociedade justa precisa de confiança. Sim, confiança. Esta variável qualitativa não tem uma forma quantitativa (não se mede em gráficos e tabelas), mas é de suprema importância. Nós sabemos – desde Adam Smith – que a confiança é o eixo orgânico das trocas comerciais. Ora, sucede que esta confiança não é um factor económico. Ou seja, nós não geramos confiança através de ferramentas económicas. A confiança é gerada através de factores institucionais (Estado de Direito) e sociais (“corpos intermédios”).

III. Vale a pena reafirmar a evidência civilizacional: sem um Estado de Direito célere e forte, o mercado não funciona. Não é possível manter uma economia de mercado saudável sem aquele ambiente de previsibilidade garantido pela lei e pelos tribunais.  O mercado é orgânico, sim senhora, mas assenta em contratos legais muito mecânicos. Por outras palavras, sem a mecânica do Estado de Direito, a natureza orgânica do mercado não funciona (quem pensar o contrário é um optimista antropológico sem emenda). E parece-nos que, nas últimas décadas, alguma euforia liberal (ex.: a ideia do mundo plano e sem fronteiras) negligenciou esta dimensão política e legal da economia.

IV. Neste momento, a ausência de um Estado de Direito na China é um dos factores que gera desconfiança entre Washington e Pequim (ex.: a questão dos direitos de autor, sempre desrespeitados pelos chineses). Não por acaso, os intelectuais indianos gostam sempre de colocar em cima da mesa a seguinte narrativa: “Índia (Estado de Direito) versus China (regime autoritário sem Estado de Direito)”. E, de facto, podemos aceitar – sem grande controvérsia – a ideia de que a Índia, apesar de ser mais proteccionista, é mais previsível a longo prazo do que a China. Um contrato vale mais na Índia do que na China.

V. Mas não é preciso ir até à Índia para compreendermos a importância do Estado de Direito. Basta olhar aqui para Portugal. Como se sabe, Portugal atravessa uma crise há mais de uma década. Em Lisboa, existe um enorme debate em torno das soluções para a crise. Maior ou menor flexibilidade laboral? Maior ou menor intervenção do Estado? Ora, todas estas discussões económicas são interessantes, mas estão situadas a jusante. A montante, a economia portuguesa tem um problema de fundo: a morosidade da justiça. Em Portugal, um empresário leva – em média – 1600 dias para reaver uma dívida pela via legal. Isto quer dizer que – na prática – a sociedade portuguesa não respeita o primado do contrato. Como é óbvio, este facto afugenta investidores e empresários. Quem é que quer investir numa sociedade que leva quase cinco anos a desbloquear uma dívida? Em consequência, o investimento directo estrangeiro representa apenas 2,4% do PIB português (na Bélgica é de 12,5%). A par da desconfiança (aceitar um cliente novo pode significar dívidas, e não lucro), esta morosidade judicial cria uma imensa injustiça, digamos, social: se uma grande empresa tem a estrutura para suportar vários calotes, uma pequena empresa já não tem essa resistência. Moral da história: sem um Estado de Direito eficaz, nem um ressuscitado Adam Smith conseguiria reerguer a economia portuguesa.

VI. A par do Estado de Direito, outro factor é fundamental para a criação da confiança: um conjunto forte e alargado de “corpos intermédios”. Recordando Tocqueville, convém dizer que o Estado moderno e burocrático não é apenas uma ameaça para o indivíduo per seO Estado também é uma ameaça para os “corpos intermédios” da sociedade, a saber: as igrejas, as associações, as misericórdias, as escolas, as universidades, os clubes, os laços de vizinhança, etc., etc. Esta rede de relações orgânicas é a base do chamado capital social. E este capital social é a argamassa cívica que une os indivíduos, isto é, a tal confiança. Neste sentido, vale a pena reinvocar um argumento clássico que está mais ou menos esquecido: a religiosidade dos americanos é um dos factores que sustenta – há séculos – a economia dos EUA. Ao frequentarem constantemente as igrejas das suas comunidades, os americanos criam laços de confiança, que, depois, são úteis nas relações económicas. Pode parecer estranho, mas os laços paroquiais são tão ou mais importantes do que a bolsa de valores na formação de uma economia justa.

VII. Em resumo, este ensaio defende que a economia de uma sociedade justa deve assentar num liberalismo conservador. Sim, com certeza, o mercado é a melhor forma de criar riqueza, mas o dito mercado tem de actuar num cenário marcado pelo rigor institucional e pela pluralidade orgânica dos corpos intermédios. Sem um Estado de Direito forte e sem comunidades interligadas por capital social (e religioso), o mercado nunca será eficaz. Por outras palavras, não podemos esquecer que a tradição liberal nasceu em debates religiosos e políticos, e não em debates estritamente económico

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Texto original publicado no Expresso, editado em parceria com ordemlivre.org (em 2011)

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