Pertencia à nossa época, ou melhor, ao período que de alguns lustros precede e segue a publicação da Rerum Novarum, a glória de penetrar ainda mais a fundo no problema da retribuição operária, sob a guia da moral cristã.
É sabido, de facto, como antes e depois da aparição do famoso documento de Leão XIII, o problema do salário se tornou entre os católicos objecto de ardentes e prolongadas controvérsias, pelas quais, se não se obtém uma solução unânime, os esclarecimentos e as determinações atingiram o supremo fastígio, orientando a grande maioria dos moralistas e sociólogos católicos acerca da mais evidente e solene justificação do salário familiar.
Sem entrarmos em discussões secundárias, acerca do salário, sintetizemos os resultados, expondo antes as noções que nos ajudarão a prevenir fáceis incompreensões e confusões.
Notemos, primeiramente, que o problema da justiça do salário tem um alcance geral. Se com a denominação de salário nos referimos ao trabalho, no qual prevalece a actividade física sobre a psíquica, especialmente intelectual, é porque é precisamente este género de prestações, em que são mais baixos os salários e muito mais fàcilmente se pode violar o direito à justa e equitativa remuneração.
Com isto não dizemos que também entre os que estão aplicados ao trabalho de direcção e entre os subalternos se não possam dar salários tão baixos que igualem os mais reduzidos.
As considerações fundamentais sobre a justiça do salário dizem respeito a qualquer trabalho ou serviço ainda que não especificadamente manual. Em segundo lugar, devemos salientar a distinção entre salário individual, que é adequado só ao sustento de cada um, e o salário familiar que corresponde ao honesto e conveniente sustento do operário e da sua família.
A divisão que se faz deste último em salário familiar relativo e salário familiar absoluto ou médio, indica um grande progresso na teoria do justo salário.
O salário relativo é o que é directamente proporcional ao número de filhos que por condição de idade ou de saúde estão a cargo da família; o salário absoluto, pelo contrário, é o salário familiar invariável, que se calcula segundo uma família-tipo, isto é, uma família com um número médio de filhos (1).
Assim, por exemplo, em muitas regiões de Portugal as famílias que têm quatro filhos. Não se exclui, entretanto, do salário familiar absoluto, alguma contribuição, por modesta que seja, da esposa e dos filhos; contanto que nem ela falte aos seus deveres domésticos, nem eles se ocupem com detrimento da sua formação e do seu desenvolvimento. O salário familiar absoluto é de alguma maneira colectivo, se bem que incumba quase integralmente ao pai a obrigação de prover às necessidades da família.
Não há dúvida nenhuma que o salário individual se deve por estrita justiça, pela justiça que regula as relações de permuta entre as duas partes contratantes, isto é, pela justiça comutativa. O trabalho deve, quando muito, equivaler às forças dispendidas pelo operário.
«Há nisto, escreve o Cardeal Mercier a tácita aplicação duma lei económica, que, em certo sentido, se junta à grande lei física da conservação das forças da natureza.
Quando uma máquina pertence a tipo de utilidade reconhecida, deve-se supor que o trabalho útil, de que ela é capaz, tem um valor menos equivalente às despesas da construção, manutenção e fornecimento que são exixidos pelo seu funcionamento. O mesmo se pode dizer da máquina viva. O valor dum animal doméstico determina-se em proporção com o que se gasta com seu sustento e demais necessidades. O trabalho humano não pode considerar-se inferior à máquina ou ao animal.
«É dever da mais rigorosa justiça, tomá-lo a priori, segundo estas bases de apreciação, e admitir como princípio que o trabalho dum indivíduo tem um mínimo de valor igual às despesas de conservação que o operário deve suportar juntamente com as outras despesas feitas com o estudo e formação no ofício…
Numa palavra, é necessário supor que o trabalho do homem vale, quando muito, o que custa ou tenha custado: deve pois indemnizar o operário dos gastos com o seu sustento, vestido e todas as outras coisas que tornam possíveis o trabalho» (‘).
Portanto, o salário que é inferior a este limite, para um trabalhador normal é sempre injusto. A dúvida surge, porém, acerca do salário familiar. Tem também este, como o salário individual, a mesma natureza jurídica? O mesmo título justificativo? O mesmo valor comutativo? Se se dá ao trabalhador uma remuneração inferior à necessidade da família-tipo, lesa-se a justiça comutativa?
Não se trata de estabelecer qual é o justo salário, mas sim qual é o seu limite extremo, abaixo do qual se tenha o salário injusto. O problema pode propor-se doutra maneira: Qual é o valor ínfimo inerente ao trabalho do operário normal, isto é, válido, adulto, não excepcionalmente habilidoso?
A maior parte dos católicos actualmente sustentam que tal valor é precisamente o que corresponde ao salário familiar absoluto: nele se tem o limite abaixo do qual se viola o direito de permuta, isto é, se destrói a própria equação da justiça comutativa.
O salário familiar absoluto é, portanto, a medida do valor ínfimo intrínseco ao trabalho. Pelo contrário, o salário familiar relativo, precisamente porque varia com o número de filhos não se pode adoptar como medida do valor do trabalho, pois uma medida instável não é medida; como o metro não seria unidade de medida se umas vezes não chegasse aos dez decímetros, outras os ultrapassasse.
Além disso, os ditames da justiça têm em vista o que sucede comummente e não o que tem carácter esporádico e acidental.
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Considerado e determinado desta maneira o problema da retribuição do trabalho, não seria difícil demonstrar como a doutrina do salário familiar, implicitamente admitida ou subentendida pelos moralistas antigos, como Molina e De Lugo; a doutrina assim expressamente aceite por Córdova e Vásquez é admitida geralmente pelos representantes mais qualificados da moral social católica, como por exemplo: Taparelli(‘), Liberatore(2), Steccanella (3), Biederlack (4), Pottier(5), Lehmkhul(4), (’) Saggio di diritto naturale, n. 1143. (2) Principii di economia política, Roma, 1889, p. 230-231. (3) D el comunismo, Roma, 1882, p. 255-270. (4) Ititroducyone alto studio delia questione sociale, Pavia, 1899, p. 158. (s) D e iurc et iustiiia, Liegc, 1900, p. 243 e segs. — L a morale catholique et les questions sociales d’aujourd’hui, Charleroy, 1920, p. 51 c segs. (6) Arceitsvertrag und Strike, Friburgo-em-Brisgau, 1892, p. 15. —■ Theologia moralis, vol. 1, Friburgo-em-Brisgau, 1914, p. 777. Périn (‘) Pesch (2), Vermeersch (3), Mercier (4), Fallon (s), Rutten (6), Ryan (7), Cathrein (•), e muitos outros.
A solidez desta maneira de pensar é muito fácil de demonstrar. Se consideramos a própria natureza do trabalho, encontraremos fundamento sólido para o salário familiar. Certamente, a actividade humana dirigida ao lucro não é uma mercadoria qualquer. É verdade que alguns encómios actuais do trabalho — animados por uma religião ou por uma mística do trabalho — desaparecerão com o desabar do seu sustentáculo materialista.
O princípio que constitui o centro da filosofia cristã do trabalho e que foi unicamente inserido na parte XIII do artigo 427 do tratado de Yersailles; o princípio de que o trabalho do homem é qualquer coisa mais do que um artigo de comércio, nunca poderá desaparecer, se é verdade que o trabalho é produto dum ser pensante e livre, duma substância que representa o que há de mais perfeito em todo o mundo.
«Pessoa, diz-nos S. Tomás, significa o que há de mais perfeito na natureza» (’). Não se pode, portanto, trocar como um instrumento qualquer e sujeitar-se inteiramente às flutuações dos preços (,#).
Não se pode prescindir, nos contratos de trabalho, da pessoa do operário, e particularmente da finalidade porque oferece o seu trabalho. O trabalho «primeiro e principalmente é ordenado a buscar o alimento, isto é, deve satisfazer as exigências da vida do operário. Entre estas imperiosas exigências deve contar-se como principal a da paternidade. Sem dúvida, o homem pode renunciar ao dever da transmissão da vida; mas são bem raras as excepções dos que escolhem o celibato.
Normalmente o operário é esposo e pai, a quem incumbe o direito e o dever de educar aqueles que são parte sua e seu prolongamento inseparável. Para cumprir dignamente este dever sagrado, o operário não tem outros meios senão as suas energias produtoras. Tem, portanto, pleno direito à compensação exigida pela sua condição de chefe e sustentáculo da família.
«Pelo facto de que o operário livremente se casa, não se segue que possa ser despojado por uma positiva convenção humana do único meio de alimentar a família que ele fundou, exercendo um direito imprescritível que lhe é dado pela natureza. Assim como a lei natural lhe confere o direito de casar, assim também a mesma lei lhe dá o direito de conseguir com o próprio trabalho o único meio de ocorrer aos encargos que daí se seguem.
Nenhuma convenção humana pode prevalecer contra semelhante direito» (2). Se assim não fosse, cairia por terra a base económica da família, e o homem deveria necessàriamente remediar-se ou com a caridade dos particulares, ou com a providência do poder público, ou, pior ainda, com o recurso a Malthus e aos meios anti-concepcionais.
A caridade não constitui senão uma válvula para os casos imprevistos e excepcionais, não já o caminho pelo qual deve andar a grande massa operária. «O bom senso universal, escreve Pottier, nunca poderá admitir que, ordinariamente, o operário válido com vontade de trabalhar, e que dê todo o trabalho, seja obrigado a estender a mão para ter o necessário para os seus»(1).
O Estado, por sua vez, não é certamente apto para o exercício habitual duma função que excede o limite de suas atribuições políticas, excepto no caso em que se queiram aceitar as aberrações do panteísmo estatal e do comunismo, como dogmas de filosofia política.
Que o Estado proveja a famílias numerosas, que concorra juntamente com a generosidade particular para combater a pobreza, que vigie e fiscalize o mercado do trabalho, que desenvolva a legislação social, que estimule as forças económicas e as coordene para melhor rendimento, tudo isto está no seu direito, e é também obrigação sua; ir mais longe corresponderia, para não dizer outra coisa, a um fardo pesado para o Estado, e para a família a um cilindro compressor da necessária autonomia.
Quanto aos conselhos de Malthus são bem conhecidos os seus malefícios deveras catastróficos. Malthus queria salvar a economia familiar não já com os equitativos proventos do salário, mas com o ingénuo expediente inteiramente negativo de oferecer ao cônjuge o refreamento moral. Já demonstrámos noutra parte (2) quão simplista é esta fórmula do Pastor anglicano considerada em si mesma; quão errónea em seu pressuposto utilitarista e quão inconsciente em seu carácter universalmente obrigatório.
O mais grave, porém, é que o ingénuo Malthus abre o caminho á técnica neo-maltusiana e a um certo eugenismo espúrio que terminam, uma e outro, na decomposição física e moral da família.
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Se, depois de termos examinado a natureza do trabalho e sua finalidade, considerarmos a natureza e a finalidade dos bens terrenos, chegaremos à mesma justificação do salário familiar no sentido já estabelecido. O natural destino dos recursos terrenos está em que todos os seres humanos devem participar deles.
Se examinarmos, em suma, o ser de toda a realidade sub-humana, encontraremos nela como que uma secreta e indómita aspiração a servir nas formas mais variadas os seres superiores, que constituem, com sua substância inteligente e livre, o mundo moral.
Os seres inferiores devem subordinar-se aos de grau superior. «Na ordem das coisas, as mais imperfeitas existem por causa das mais perfeitas» (‘). «As coisas exteriores, ensina S. Tomás, estão sujeitas, quanto ao uso, ao poder do homem.
Este tem um domínio natural dos bens, porque com sua razão e vontade pode utilizá-los como destinados a si mesmo» (* 2). Por outras palavras, o homem tem o direito natural abstracto sobre os mesmos bens, isto é, o direito de propriedade. Enchei toda a terra e sujeitai-a (3), disse Deus aos homens, e com isto todas as riquezas do mundo são destinadas a toda a espécie humana.
Ora, os operários e suas famílias no actual regime económico não podem utilizar directamente a terra, porque não a possuem. É preciso, portanto, se não queremos considerar o regime da propriedade particular dos terrenos como radicalmente vicioso, proporcionar aos trabalhadores o meio para conseguirem decorosamente a parte dos bens necessários para eles e para seus filhos.
Este meio normal não pode ser para o operário senão o trabalho protegido pelo direito ao salário familiar…
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Contra estas e outras provas, que por brevidade omitimos, se opôs o facto de que ser o trabalhador casado ou não, é circunstância inteiramente estranha ao contrato de trabalho, o qual se faz entre o empresário e o operário, e não a sua família. «Leão XIII recebendo em Setembro de 1891 uma peregrinação de operários franceses dizia que a solução da questão social está, de sua natureza, ligada aos preceitos da perfeita justiça, a qual reclama que 0 salário corresponda adequadamente ao trabalho.
«A relação portanto de equivalência estabelece-se entre o salário e o trabalho, e não entre o salário e a pessoa ou as necessidades do operário.
«O bom senso, aliás, diz-nos que uma mesa ou uma cadeira têm o mesmo valor quer o construtor seja solteiro quer seja pai de família» (’). Poder-se-á dar, por conseguinte, ou dever-se-á dar o salário familiar por motivos filantrópicos ou por exigências de ordem social, mas não por obrigação de justiça comutativa.
É verdade que a família não faz parte do contrato de trabalho, mas sim cada operário; porém, este não é um ser inteiramente abstracto, livre de toda a concreta atribuição, mas é sempre virtual ou efectivamente pai, ou melhor, é normalmente pai, com direitos e deveres que nenhum contrato pode anular.
Se, pois, o trabalho é pessoal em sua causa eficiente, é familiar em sua causa final. Ê também verdade que 0 salário deve corresponder adequadamente ao trabalho.
Ora, precisamente, o salário familiar como o definimos, é aquele que iguala, como limite inferior, o trabalho e constitui o seu valor mínimo.
«O princípio do salário familiar, escreve Fallon, não se opõe ao princípio de que o trabalho deve ser retribuído segundo o seu valor; mas demonstra precisamente que o valor do trabalho deve ser tal que corresponda à subsistência da família operária, quando a riqueza geral é suficientemente elevada.
O princípio do salário familiar fornece um facto estável, com o qual se deve avaliar o trabalho e os diversos elementos que nele concorrem. É preciso coordenar estes valores de maneira que a sustentação da família operária seja assegurada com o trabalho de seu chefe» (’). É verdade finalmente que a relação de equivalência não se estabelece entre o salário e as necessidades do trabalhador, mas entende-se das necessidades particulares de cada indivíduo e como causas de determinantes imediatas e exclusivas do salário.
O que determina imediatamente o salário é a utilidade inerente ao trabalho do operário, isto é, aquela parte útil devida à cooperação do trabalho na produção. Esta utilidade por sua vez tem bases de estimativa que nos levam a admitir como tal utilidade deva equivaler às necessidades da família operária: necessidades não já particulares, mas comuns, não do indivíduo mas da generalidade, e por conseguinte não diversas e variáveis, mas idênticas e estáveis (2).
Estas necessidades gerais oferecem-nos seguramente meios para descobrir o limite do justo salário no salário familiar.
Em suma, se a objecção proposta tem algum valor, tem-no somente contra o salário familiar relativo, que é proporcionado ao número de filhos e assim se daria o absurdo de que o mesmo trabalho tem valor inferior se é feitio por um solteiro, tem maior valor se é feito por um pai de família.
Daqui a diferença entre este princípio e o princípio socialista: «A cada um segundo as próprias necessidades». Pelo contrário, com o princípio do salário familiar absoluto salva-se a norma bem conhecida da justiça: A trabalho igual salário igual.
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Várias outras objecçôes se propuseram contra o valor familiar do trabalho do operário: para a sua solução leiam-se os tratados sobre o assunto, mas não podemos passar em silêncio uma objecção de carácter geral que constitui um preconceito contra a mesma concepção moral do salário.
A ciência económica, como o notámos desde o princípio, abstraindo do seu carácter de ciência essencialmente moral, assegura-nos que é simplesmente ingénuo e impraticável o conceito do justo salário no mundo económico.
O salário é inflexivelmente regulado pelas férreas leis naturais, psicológicas, matemáticas; e a moral no campo determinista é incompreensível. Excogitaram-se muitas destas leis, e servem hoje aos coleccionadores de extravagâncias económicas para encher grossos volumes (1).
As mais célebres destas leis são: a teoria da escola clássica, fundada no dogma do trabalho -mercadoria, segundo a qual o justo salário é simples produto da livre concorrência; a concepção da lei de bronze dos salários, segundo a qual o salário real fatalmente oscila à volta do mínimo indispensável para a conservação e reprodução; a teoria do fundo dos salários (Wage-Fund), que faz dos salários o quociente exacto entre o capital circulante que é destinado ao trabalho, e o número dos operários ; a teoria da produtividade do trabalho, segundo a qual o salário não é determinado pelo capital, mas pela produção; a teoria utópica da utilidade marginal que concebeu um ser abstracto, o trabalhador marginal, isto é, a medida do salário de todos os outros trabalhadores, ainda que seja duma eficiência produtiva superior (‘)
- Estas pseudo-leis e tantas outras redigidas no mesmo teor, além das peculiares incongruências de cada uma, têm uma comum: a apregoada incompatibilidade da norma moral com a morfologia da economia. Ora, esta incompatibilidade nunca foi demonstrada e, se se procura examinar, provém duma falsa concepção da moral, e mais vezes ainda, da errónea concepção da economia e de suas leis (2).
«É certo, dizemos com Haessle, que aqueles que concebem a moral como um catálogo de utopias, procurarão em vão a harmonia da sua moral e da economia social.
Quem considera o mundo como obra dum Criador pessoal e exterior ao mundo, reconhecerá na natureza de todo o ser a expressão inteligível da vontade divina, donde dimana a norma suprema de toda a ética» (3). Sem dúvida, a determinação do salário tem de contar com as exigências da realidade económica, mas isto quer dizer que o elemento voluntário não pode tudo, mas não quer dizer que não possa nada, e basta este seu poder parcial para que o salário ascenda ao grau de um facto moral e jurídico.
Expusemos sumàriamente as primeiras fases e o pleno desenvolvimento da doutrina católica do salário; falta -nos considerá-lo nos documentos pontifícios.
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