Entre esses elementos, destacou-se o comportamento das grandes empresas farmacêuticas, que sistematicamente colocam como seu principal objectivo o de optimizar os seus lucros, em detrimento do fim de prevenir e/ou curar doenças que, quando disseminadas, podem-se tornar pandemias, como acontece agora.
Essa submissão aos interesses privados em sectores tão importantes para a saúde e a qualidade de vida das populações – como a saúde, incluindo o sector farmacêutico – tem sido característica do período neoliberal.
Começou no mundo ocidental a partir dos Anos 80 com a extensa privatização de sectores vitais para o bem-estar da população. Tais práticas foram promovidas pelo presidente Ronald Reagan, e pela primeira-ministra britânica Margaret Thatcher. Posteriormente, continuadas na Europa por governos conservadores, liberais e social-democratas, que endossaram tais políticas, como foi o caso dos governos presididos por Tony Blair no Reino Unido, Gerard Schröder na Alemanha e José Zapatero, na Espanha – logo, Mariano Rajoy ampliaria consideravelmente esse modelo.
Tornou-se a ideologia hegemónica em instituições nacionais e internacionais, como o FMI (Fundo Monetário Internacional), Banco Mundial, Banco Central Europeu, Parlamento Europeu, Comissão Europeia, entre outros. As consequências de sua aplicação foram enormes, contribuindo muito para o estabelecimento das bases que permitiram a expansão da actual pandemia. Vamos olhar os dados.
A contribuição do neoliberalismo para reduzir a capacidade da sociedade de responder a epidemias
A expansão do neoliberalismo contribuiu para o fato de que, desde os Anos 80, o mundo passou por quatro grandes epidemias (ebola, SARS, MERS e agora covid-19), sendo a aplicação de suas políticas – ou seja, desregulamentação dos mercados e sua globalização, bem como políticas de austeridade social – um dos factores que mais contribuíram para a disseminação de tais doenças nos dois lados do Atlântico Norte. Isso explica porque elas adquiriram grande visibilidade dos média, pois também houve outras epidemias que, uma vez que não afectaram esses países e ficaram limitadas e contidas nos países subdesenvolvidos ou em outros continentes, dificilmente foram notícia.
Entre essas medidas, duas foram particularmente importantes: uma foi, como acabei de mencionar, a desregulamentação do movimento de capitais e do mundo do trabalho, criando grande mobilidade de pessoas e produtos de consumo em todo o mundo, com enfraquecimento políticas de protecção ao trabalhador e ao consumidor, bem como extensa desregulação do mercado de trabalho. A outra intervenção, também prejudicial ao bem-estar das classes populares, tem sido a redução de serviços essenciais para garantir o bem-estar da população, como o serviço de saúde pública.
Aconteceu o mesmo com os serviços do 4º pilar de bem-estar – sector social- , como escolas, jardins, creches, lares, todos essenciais para diminuir o enorme impacto negativo da epidemia na qualidade de vida das populações.
Entre os países do capitalismo mais desenvolvido que aplicaram essas políticas neoliberais mais severamente estão os Estados Unidos – e de uma maneira muito especial, o governo do Partido Republicano presidido por Donald Trump, que também domina o Senado –, a Espanha e a Itália. Esta última, muito particularmente, durante a presença Liga do Norte, de extrema-direita, no poder do país, junto com seu líder, Matteo Salvini.
A expressão máxima do neoliberalismo: os Estados Unidos de Trump
Existem duas características que definem os Estados Unidos hoje. Uma delas é o nível muito baixo de protecção social das classes populares. O padrão de vida da classe trabalhadora foi bastante reduzido como consequência do grande aumento da precariedade e do chamado “emprego múltiplo” no mercado de trabalho norte-americano. De acordo com um estudo recente da prestigiada Brookings Institution, publicado em 2019, 44% dos trabalhadores nos Estados Unidos (mais de 53 milhões) são trabalhadores com baixos salários (com um salário médio de pouco menos de 18 mil por ano). O informe conclui que “quase metade dos trabalhadores obtém salários insuficientes para fornecer segurança económica”.
Essa percentagem cresceu notavelmente durante o governo de Trump. Um indicador dessa escassa protecção social é que a grande maioria dos trabalhadores não tem licença médica, ou seja, se não trabalham porque estar doentes, não recebem salário ou ajuda financeira, seja ela privada (fornecida pelo empregador) ou pública (seguridade social).
Isso significa que os trabalhadores tendem a ser muito resistentes à necessidade de parar de trabalhar, porque isso significaria interromper o seu rendimentos. Esta é a razão pela qual muitas pessoas doentes, infectadas pelo coronavírus, continuam a trabalhar e espalhando o vírus.
Mas a dimensão mais dramática dessa falta de protecção é que a maioria dos serviços de saúde é privada. Quase 30 milhões de pessoas nos Estados Unidos não têm cobertura de saúde e outras 27 milhões têm cobertura muito insuficiente. Como resultado do fraco desenvolvimento do sector público, os Estados Unidos são um dos países com o menor número de camas hospitalares por cada mil habitantes, entre os membros da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico, o grupo de países mais desenvolvido no mundo capitalista).
A resposta de Trump à epidemia
A estratégia do governo do presidente Trump se concentrou em negar a existência de um problema, atribuindo ao Partido Democrata a criação de uma epidemia inexistente que, segundo ele, se baseia na disseminação de fake news. Ele ordenou que a mais alta autoridade federal de saúde pública, o CDC (sigla em inglês do Centro de Controle e Prevenção de Doenças, cujo orçamento foi reduzido por Trump em 18% ao ano) proibisse testes de identificação, para mostrar se a pessoa está ou não infectada com o covid-19, com excepção aos realizados pelo próprio CDC, que limitou esse número de testes a uma quantidade mínima apenas 26 testes para cada milhão de habitantes, entre 3 de janeiro e 11 de março, segundo dados da BBC. A Coreia do Sul realizou 4 mil testes por milhão no mesmo período.
Além disso, o presidente Trump cortou o Programa Federal de Emergências Infecciosas em 20%, eliminando ao mesmo tempo a unidade de pandemia do Conselho de Segurança Nacional, de modo que esta instituição se concentrou apenas na segurança militar, deixando de lado a segurança do bem-estar. Fez grandes cortes nas pesquisas do NIH (Instituto Nacional de Saúde), incluindo pesquisas sobre o coronavírus, as quais, se concluídas, poderiam ter evitado tal pandemia.
O enorme alarme popular forçou o presidente Trump a reconhecer que há realmente uma epidemia, um facto que ele percebeu após o colapso da bolsa de valores. Actuou para estimular a economia, e pediu para reduzir salários e impostos mais baixos e, principalmente, contribuições para a previdência social – como parte da tentativa de Trump de eliminar um programa federal.
Ultimamente, voltou a agir de acordo aos ânimos do público, e tomando decisões em resposta à actividade proactiva do Partido Democrata e da Câmara (onde os democratas são maioria), que estão usando a falta de resposta do governo Trump à epidemia como elemento chave para tentar derrotá-lo nas próximas eleições. O presidente, a respeito disso, usa sua linguagem ultranacionalista para pedir a mobilização contra o “vírus estrangeiro” enviado por um país hostil, a China.
Experiência em países com cobertura de saúde pública
Um grande número de países no mundo possui sistemas de cobertura de saúde universais ou quase universais, o que permite maior controlo dos danos causados pela pandemia. Desde que começou, há mais de dois meses, na China, a epidemia já atingiu mais de 150 países, com 175 mil pessoas infectadas e 6,7 mil mortes. Em um relatório recente da OMS (Organização Mundial da Saúde) de fevereiro deste ano, são apresentados dados de grande interesse sobre como essa pandemia deve ser respondida, e a relação com as condições dos serviços de saúde e outros serviços sociais.
Entre as condições que favorecem uma resposta positiva à pandemia estão o nível de solidez e maturidade de tais sistemas sociais e de saúde, bem como a estratégia para atacar a epidemia. Isso inclui ser capaz de detectar pessoas infectadas e cuidar de quem tem e desenvolve a doença, garantindo que a capacidade do sistema de saúde seja mantida para atender adequadamente o número crescente de pacientes, garantindo que eles tenham os recursos profissionais suficientes para atender toda a população.
A existência de cada uma dessas características é um indicador do compromisso público e colectivo à solidariedade diante de uma ameaça comum que a sociedade deve enfrentar. E são uma boa base para avaliar a resposta dos países à epidemia.
Quem fez melhor
Seguindo esse critério, um artigo recente da Lancet mostra como a estratégias bem-sucedidas de contenção do Japão, Hong Kong, Singapura e Coreia do Sul, além do enorme esforço realizado pela China, se basearam na existência dessas práticas acima citadas. Isso permitiu que serviços públicos, altamente populares, controlassem a propagação da epidemia e cuidassem da população doente.
Porém, alguns países carecem dessas características, e mostram que algumas dessas deficiências são causadas pelas políticas de austeridade neoliberal realizadas pelos governos. Um artigo escrito por Wim De Ceukelaire e Chiara Bodini, publicado no meio International Journal of Health Services, salienta que a privatização dos serviços de saúde em muitos países europeus, como a Itália, juntamente com os cortes nos gastos em saúde pública, dificultaram a solução rápida da pandemia, tornando o caso italiano o melhor exemplo europeu de colapso do sistema de saúde.
Os autores apontam que “na Itália, o país mais afectado na Europa até agora, a regionalização da assistência à saúde, como parte de uma política muito mais ampla de desmantelamento e privatização progressiva do Serviço Nacional de Saúde, atrasou significativamente o adopção de medidas coerentes para conter a doença e fortalecer o sistema de saúde”.
“Como seus sistemas de saúde não foram capazes de coordenar as respostas colectivas apropriadas, não deveria surpreender que as medidas tomadas pelos governos europeus se concentrem nas responsabilidades individuais das pessoas. O distanciamento social tornou-se a peça central dos planos de mitigação do covid-19”.
Contudo, os autores também apontam que, mesmo quando essas medidas que enfatizam a responsabilidade individual são necessárias, o facto é que elas são insuficientes. É necessário acrescentar intervenções colectivas, que devem incluir a prestação de serviços públicos, como, além de serviços de saúde, serviços sociais e serviços de apoio às famílias incluídas no 4º pilar do bem-estar (escolas, jardins, creches, lares), além de garantir os direitos trabalhistas e sociais da população para resolver os problemas criados pela pandemia nos mercados de trabalho e nas sociedades a ela sujeitas.
A epidemia e sua resposta na Espanha
A resposta da Espanha à pandemia ocorreu no contexto de um sistema de saúde praticamente universal. Mas existem três fraquezas extremamente importantes para o tópico em questão. Um deles foi a enorme falta de financiamento, que eu denunciei repetidamente em meus livros e artigos, que deixaram esse sistema numa situação de pouca capacidade de responder aos enormes danos que a inevitável propagação de doenças virais causará.
Na realidade, essa falta de financiamento explica a dualidade nos serviços de saúde, com serviços privados (de maior sensibilidade ao usuário, mas pior qualidade de atendimento) para 20% a 30% da população de maior renda e serviços públicos para a maioria (70% a 80% da população).
Os enormes cortes aumentaram o sector privado à custa da redução do público, acentuando a polarização por classe social que caracteriza a saúde espanhola. Mais uma vez, os cortes na Espanha estão entre os mais pronunciados na União Europeia.
Segundo os dados do Eurostat, as despesas com saúde passaram de 6,8% do PIB em 2009 para 6,4% em 2014 (com base em dados da OCDE, no mesmo período, e em dólares). Os gastos passaram de 2,2 mil dólares per capita 2 mil dólares per capita, enquanto na média da Europa foi de 3 mil dólares per capita a 3,3 mil dólares per capita.
Esse baixo e reduzido gasto em saúde traduz-se em muitos outros indicadores. O número de médicos – de acordo com a OMS – passou de 47 para cada 10 mil habitantes em 2009 para 40 para cada 10 mil em 2016 (14% a menos). Na Suécia, essa última estatística passou de 32 em 2007 para 54 em 2016. E em termos de leitos hospitalares, também com dados da OCDE, passou de 3,3 camas para 3 para cada mil habitantes, entre 2007 e 2016. Na Itália, passou de 3,7 a 3,2.
Outra grande fraqueza é o poder escasso que as agências de saúde pública têm na Espanha, enviesadas a favor de interesses económico-financeiros e dos lobbies, em detrimento dos interesses dos utentes, trabalhadores e classes populares. Como regra geral, os municípios (o nível do governo em que está localizada a maioria dos departamentos de saúde pública) têm muito pouco poder. Isso foi visto nas constantes lutas que o actual conselho da cidade de Barcelona vem enfrentando com os lobbies financeiros e económicos para proteger a saúde, e os interesses das classes populares, com frequentes rejeições por parte dos níveis mais altos do governo ou do sistema judicial, profundamente conservador.
A terceira fraqueza é o desenvolvimento muito limitado dos serviços essenciais para ajudar os dependentes e as escolas infantis, necessários para a solução dessa crise, como apontei na secção anterior sobre os Estados Unidos. Na realidade, a pouca protecção que as famílias têm na Espanha e o desenvolvimento limitado de serviços de apoio a essas famílias, que, por sua vez, são consequência do baixo poder das mulheres. Elas estão vendo a deterioração cada ver maior do seu bem-estar (e, em particular, as mulheres da classe trabalhadora e outros sectores das classes populares), graças a medidas, como o fecho das escolas, que criam sérios problemas para elas, uma vez que forçam mudanças na combinação de tarefas profissionais com responsabilidades familiares, que continuam sendo realizadas pelas mulheres, dificultando a sua integração no mercado de trabalho.
Em suma, a pandemia mostra as grandes insuficiências do Estado de Bem-Estar da Espanha e seus serviços, resultado do seu escasso financiamento (um dos mais baixos da Europa) e de sua dualização por classe social, criando uma polarização social que rompe com a solidariedade necessária para resolver os grandes problemas que a pandemia cria.
O grande domínio que as forças conservadoras (de sensibilidade neoliberal) tiveram e continuam a ter sobre o aparato estatal e sobre o establishment dos média do país levou a uma situação que mostra os enormes déficites que persistem na Espanha, e que têm sido silenciados ou ocultados pelo referido establishment.
É necessário que haja uma ampla mobilização na sociedade para exigir mudanças substanciais e profundas, com a expansão de tais serviços, pressionando o novo governo de coligação de esquerda a tirar proveito de circunstâncias excepcionais para corrigir esses déficites, tentando, entre outras medidas, mobilizar fundos e poderes públicos a serviço dos cidadãos, com base em uma redistribuição muito notável da riqueza do país que contribui para a obtenção dos fundos necessários, reduzindo as desigualdades sociais que vêm deteriorando a qualidade democrática do país e o bem-estar da população durante o longo período neoliberal.
A continuação das políticas neoliberais seria suicídio para o país, aumentando ainda mais o sofrimento das classes populares. O esplêndido exemplo da mobilização realizada para agradecer os profissionais e trabalhadores da saúde é um exemplo da solidariedade que a população da Espanha pode oferecer num momento em que o bem comum deve ser o único critério de avaliação das políticas estatais.
Espero que este artigo ajude a entender as consequências negativas que o pensamento económico dominante teve, com a cumplicidade dos grandes órgãos de comunicação que as reproduziram, algo que aparece com total clareza durante a maior crise que a maioria dos países – incluindo a Espanha – sofreu nos últimos anos. Eu apreciaria se este artigo fosse amplamente distribuído no país.
Vicente Navarro: foi professor de Economia Aplicada na Universidade de Barcelona. Também foi professor de Políticas Públicas na Universidade Johns Hopkins. Actualmente, dirige o Observatório Social da Espanha.
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