Um café ao postigo… Hoje a praceta acordou bem mais risonha, com a escola aberta e as vozes dos miúdos a celebrarem o dia. O que eles têm sofrido com a falta dos amigos. Se nestes primeiros dias a excitação for maior, os professores façam favor de ter (ainda) mais um suplemento de paciência. A meio da manhã já havia aulas de ginástica no recreio e eu, sortuda, a vê-los da minha janela. Já sentia muitas saudades disto e dou comigo a pensar que tenho aproveitado muito pouco esta magnífica fonte de energia positiva. Só damos valor às coisas quando não as temos, é bem verdade.
Muitas novidades nos traz o dia. As vendas ao postigo devem ter mudado bastante a dinâmica do bairro, ainda não fui ver, reservo-me para ir lá abaixo depois do almoço. Ao que não resisti mesmo foi a ir ao café, fica mesmo atrás de casa e as gentes são simpáticas e conhecidas de longa data. Semanas seguidas a tomar café em casa merecem uma celebração. Não que frua o café como quando tirava o curso, em jovem, e lá passava horas a fio, às vezes dias quase inteiros. Agora, não tenho de todo paciência para isso, tenho sempre que levar leitura e mesmo assim aguento pouco tempo. Por isso, este pequeno café da rua de trás é o ideal, três mesas de bancos altos, tipo bar, uma miniesplanada por enquanto sem funcionar e pouco espaço para ajuntamentos. Mas o café das 11h da manhã não posso perdê-lo e, francamente, sabe muito melhor lá fora.
Há uns tempos abriu uma mercearia fina no centro. Este termo, mercearia fina, é antigo, não é que se chame assim. Era esta a designação de certos estabelecimentos da baixa, em Lisboa, hoje quase todos desaparecidos, onde se vendiam iguarias e exotismos próprios do Natal e celebrações desse tipo. Esta mercearia é moderna, vende coisas impensáveis há anos atrás, como sal dos Himalaias, café de origens geográficas a exigir consulta no atlas e produtos por encomenda.
No outro dia fomos lá, para conhecer. Quase sem clientes, os donos desfizeram-se em simpatias e sugestões de produtos originais que tinham à venda. “Um cafèzinho é que não pode ser…”, lamento eu, a olhar para a máquina, sem as habituais chávenas e parada. “Pois não, minha senhora”, responde o dono com voz de lástima. E continuando, em tom muito mais baixo: “A senhora dê a volta ao balcão… Oh Zé, tira aí duas bicas, pôe deste lado”. O quê?! Primeiro fizemos cerimónia, uns segundos, mas era irresistível, confesso. E não é que aquela bica clandestina nos soube pela alma, muito melhor do que qualquer café normal tomado à mesa antes da pandemia?!
Mas hoje não! A bica hoje foi legal, ao postigo mas de acordo com todas as disposições mais recentes. Em copo de plástico, para ser descartável, gel nas mãos e máscara para baixo e para cima, à entrada e à saída, mas legal. Depois de uma fila de carentes como eu, alguns a prolongar a conversa e a esquecer-se de quem estava atrás… Talvez amanhã tome a bica em casa.
Margarida Chagas Lopes, autora em Grupo Privado Sociedade Justa
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